O Tribunal de Instrução Criminal arquiva o processo contra Fontão de Carvalho. Fecha-se outro capítulo de um dos mais lamentáveis «casos» políticos dos últimos anos: a implosão interna (via PSD) da presidência de Carmona Rodrigues em Lisboa.
O Tribunal de Instrução Criminal arquiva o processo contra Fontão de Carvalho. Fecha-se outro capítulo de um dos mais lamentáveis «casos» políticos dos últimos anos: a implosão interna (via PSD) da presidência de Carmona Rodrigues em Lisboa.
Anda ao rubro a consciência nacional, ferida pelas diatribes de Maitê Proença. Esta assunto está a trazer ao de cima algumas das principais qualidades que caracterizam o povo português (se essa generalização fosse possível): a tolerância, a capacidade de auto-ironia e de reconhecer os seus próprios defeitos, a inteligência (na resposta às críticas), a generosidade...Vi a peça da actiz brasileira e achei-a divertida - e certeira nalguns aspectos -, sem ser nada de especial; tem uma parte escatológica q.b,. que nem todos apreciam, mas alguma coisa naquilo justifica estes disparates?
Para quem se mostra muito preocupado com o enésimo decréscimo da taxa de natalidade: reproduzam-se ou abram a porta aos imigrantes.
O Comité Nobel parece apostado este ano em testar a sua credibilidade. Depois do Prémio Nobel da Literatura ontem atribuído a Herta Müller, hoje vem o Nobel da Paz para Obama. Sem pôr em causa as boas intenções do Presidente americano, nem a utlização dos seus afamados dotes oratórios nesta matéria, o que é que Obama fez efectivamente em favor da paz desde que é Presidente? E o que é que já poderia ter feito e ainda não fez (nomeadamente no Médio Oriente, no Congo, no Sudão, na Birmânia, etc)? Parece ser uma decisão precipitada e néscia.
Da morte podem dizer-se muitas banalidades. Mas a transformação da própria morte de alguém numa coisa banal é algo que implica a sua desumanização; o genocídio, as execuções em massa, os campos de extermínio, que correspondem a essa banalização da morte, só são concebíveis - ou aceitáveis num sentido não valorativo desta palavra - se os carrascos conseguirem ver as vítimas como «outros», como não-pessoas, como algo ontológicamente diferente de si próprios. Se assim não fosse, seria impossível afastar o carácter sacralizado, místico, da morte, como momento de condensação de uma qualquer energia vital, de um qualquer projecto específico, uma transformação ou cessação da alma (e vou já pedindo a necessária indulgência para estes dislates). No caso dos animais, esta dificuldade seria facilmente ultrapassada: não são humanos, o momento em que deixam de viver (=morte) nada tem de único porque os animais não têm singularidade, são a repetição de alguns moldes em diversas variações, não têm alma, não são criadores, são só criaturas, cujo sacríficio é autorizado desde que afastada a pura arbitrariedade. No entanto, a morte de um animal, se olhada, se «vivida», tem muito de singular, de «humano», na dor, no sofrimento, no medo, na presciência ou na falta dela, «quando a luz se escoa», como fica claro no tempo implacável deste terrível e belo poema de Francisco Brines (a tradução, como sempre. é de José Bento):
MORTE DE UM CÃO
A chegar à cidade
pude ver que os rapazes atacavam o cão
e o obrigavam, confundidos os gritos e os uivos, a desfazer o nó com o corpo do outro,
e a corrida louca contra o muro,
e a pedra terrível contra o crâneo,
e muitas pedras mais.
E volto a ver aquele rodopio
súbito, todo o pavor do seu corpo,
sua vertigem ao correr,
sua vida a transbordar daquele corpo flexível,
sua vida que escapava pelos olhos abertos,
cada vez mais abertos
porque a morte o obrigava, com sua pressa irada,
a abandonar de dentro tanta substância por viver,
e só pelos olhos encontrava saída;
porque não havia luz,
porque só a sombra chegava, tenebrosa.
Ali entre os detritos
daquele muro de inóspito arrabalde
ficou estendido o cão;
e agora lembro sua cabeça hirta
com angústia imprevista:
como os humanos, seus olhos reflectiam
o terror ao vazio.
Mesmo as humildes criaturas invertebradas, em que não encontramos a dimensão trágica da morte por imitação da morte humana, contêm a possibilidade de individualização pela morte. E agora recorro à serena poesia de Fiama Hasse Pais Brandão:
NATUREZA MORTA COM LOUVADEUS
Foi o último hóspede a sentar-se
no topo da mesa, já depois do martírio.
As asas magníficas haviam-lhe sido quebradas
por algum vento. Perdera o rumo
sobre a película cintilante de água
no riacho parado. Tal como poisou
junto de nós, com o belo corpo magro
arquejante, lembrava, ainda segundo o seu nome,
um santo mártir. Enquanto meditávamos,
a morte sobreveio, e a pequena criatura,
que viera partilhar a nossa mesa,
depois de ter sido banida das águas
foi banida da terra. Alguém pegou
no volúvel alado corpo morto
abandonado sem nexo na brancura da toalha
- que maculava -
e o atirou para qualquer arbusto raro
que o poeta ainda pôde fotografar.
A morte é tão só, estupidamente, desencarnadamente, a ausência de vida e a memória da mesma. Como uma sombra. Mais uma vez Fiama:
A CRIA MORTA
As ovelhas baliam ao longe
levadas pelo caseiro
até à outra margem do campo,
quando a verdura escorre mansamente
de socalco em socalco
e fica estagnada numa berma sombria.
Só a sombra
detém esse caudal verde.
E nada susteve a primavera inelutável,
nem a agonia
do cordeiro ante-pascal.
Há muito tempo que um livro não me irritava tanto. Mas provavelmente sem razão. Os desaparecidos, de Daniel Mendelsohn, que relata um périplo afectivo e geográfico - Austrália, Galícia, Israel, Escandinávia... -, numa busca pelo que sucedeu verdadeiramente aos seus parentes desaparecidos no Holocausto, parece ser mais um volume destinado à família do autor do que ao público em geral. O narcisismo do autor, a equiparação obsessiva dos seus traços físicos aos dos familiares desparecidos, a exposição (muito americana) sem qualquer pudor dos seus sentimentos (do autor e dos seus irmãos), a omissão de partes da história, em si perfeitamente legítima, mas que o autor nos "esfrega na cara", dando o máximo relevo àquilo que aparentemente pretende resguardar, tornam a leitura desconfortável - no fundo, como se o leitor estivesse a partilhar de algo que não lhe cabe. E a comparação do conflito entre Caim e Abel com a relação entre os judeus e os ucranianos, que é uma das linhas de força do livro, é pretensiosa e (julgo) despropositada, tal como o alongamento artificial da narrativa. Mas a afectuosa caracterização de algumas figuras notáveis - a irónica e comovente Sr.ª Begley, por exemplo -, muito bem conseguida, e a serena descrição da indizível violência, maldade, mesquinhez e paradoxal banalidade das atrocidades que são reveladas na segunda metade do livro, justificam plenamente a sua leitura. O passado é uma pedra com várias faces. Muitas vezes pesada e erodida.
A comunicação presidencial da passada terça-feira deve ser uma das declarações políticas mais comentadas dos últimos anos. É uma peça enigmática, que conscientemente pouco explica, e não prima pela elegância, como é do timbre do seu autor (que todavia, tem outros méritos mais relevantes). Para alguns, é a confirmação do carácter maléfico, anti-democrático e arcaico que sempre reconheceram ao actual Presidente; para outros, é apenas uma intervenção desastrada e muito arriscada que não expôs (ainda) males maiores (julgo que foi o melhor que até agora se conseguiu arranjar). No entanto, pensoque a maioria das observações até agora feitas perde de vista o carácter da intervenção presidencial, que não é (não pode ser) táctico, mas sim estratégico. Representa a afirmação presidencial de que um Governo minoritário do PS não pode contar com o seu apoio, ao contrário do que sucedeu com o Governo de Cavaco em 85 e com os Governos de Guterres. E um Governo minoritário sem apoio ou pelo menos tolerância presidencial é uma impossibilidade lógica. Daqui resultam uma série de interrogações: quis o Presidente fazer uma tentativa desjaitada de recomendação ou imposição de um Bloco Central? Aposta o PS em eleições a curtissimo prazo, para recuperar a maioria absoluta (que o Presidente não permitirá certamente)? Desistiu Cavaco Silva já da sua reeleição (mas ano e meio é muito tempo em política)? O conflito inevitável que se seguirá será surdo por vontade do Presidente e estridente por vontade do Governo. Mas é o Presidente que tem a melhor mão nesta situação. E desenganem-se os habituais arautos da reforma constitucional (desta vez para reduzir os poderes presidenciais): o Presidente não utilizou nenhum dos seus poderes de direcção política, mas o singelo poder de exteriorização do seu pensamento, acessível a qualquer (supostamente) inócuo Presidente de um sistema parlamentar: basta pensar nas intervenções espantosamente desajustadas e inconvenientes (e nas delirantes gaffes...) do Presidente alemão Lübke (1959-1969).