BORBOLETA NOCTURNA
Belas asas de rumor
perdidas delinaeadas a sépia
na mesa da memória.
Mancha negra ao anoitecer
sobre a toalha. Tão longe
o eco dos cristais.
Fiama Hasse Pais Brandão in Ecos / Três rostos (1989)
BORBOLETA NOCTURNA
Belas asas de rumor
perdidas delinaeadas a sépia
na mesa da memória.
Mancha negra ao anoitecer
sobre a toalha. Tão longe
o eco dos cristais.
Fiama Hasse Pais Brandão in Ecos / Três rostos (1989)
Não deve existir nada de mais brutal e amargo do que a morte de um filho. A estupefacção decorrente da inversão de uma lógica da ética (se esta existisse): os nossos filhos devem, têm de enterrar-nos, e não o contrário. Não sei - espero nunca vir a saber - como se lida com essa perda. Para os nossos antepassados, ainda próximos - e para quem vive noutras latitudes -, as coisas deveriam ser um pouco diferentes: a grande taxa de fecundidade e a baixa esperança de vida obrigavam a encarar a morte de uma forma mais natural, integrando-a no quotidiano. Mas para nós, os que vivemos em sociedades com poucos crianças, com uma longevidade aumentada, e com a morte escondida envergonhadamente no canto das coisas desagradáveis, a morte de um filho é vista como algo de inexplicável, de intolerável, fora da narrativa pós-romântica em que construímos a nossa vida - fora da ordem natural das coisas. Dessa impossibilidade dá conta a Sr.ª Szymborska, com a serenidade (enganadora) e a acuidade que lhe são próprias, num cruel exercício; demasiado distanciado, talvez - mas haverá outra forma de olhar para isto?
BAGAGEM DE VOLTA
No cemitério, o talhão das pequenas campas.
Nós, de longa existência, atravessamo-lo furtivamente
como os ricos atravessam um bairro de lata.
Aqui jazem a Zosia, o Jacek e o Dominik,
prematuramente roubados ao Sol, à Lua,
às estações do ano e às nuvens.
Pouco amealharam na bagagem de volta.
Uns trapitos de paisagens
em número muito pouco plural.
Um punhado de ar com uma borboleta a esvoaçar.
Uma colherinha de saber amargo com gosto a remédio.
Umas pequenas desobediências,
nelas, uma mortal.
Uma alegre corrida atrás da bola pela estrada.
Um momento de felicidade ao deslizar no gelo quebradiço.
Este, aquela ali ao lado e aqueles lá da ponta:
antes que tivessem crescido para chegar à maçaneta,
estragar o relógio,
partir o primeiro vidro.
Malgorzatka, quatro anos,
dos quais, dois, deitada a olhar o tecto.
Rafalek - faltava-lhe um mês para completar os cinco,
Zuzia - a ela, só o Natal
com aquele bafo da respiração no frio.
E o que dizer então da vida de um só dia,
de um minuto ou de um segundo?
As trevas, o clarão da lâmpada e de novo as trevas?
KÓSMOS MAKRÓS
CHRÓNOS PARÁDOKSOS
Somente o grego pétreo tem palavras para isto.
Wislawa Szymborska in Instante (2002)