Primeiro começa por ser uma sensação omnipresente de que falta algo, um membro, uma parte do corpo temporariamente inutilizada, um sentido, algo que era tão «nosso» que a sua ausência se sente em cada minuto. Depois, como sempre acontece, vamo-nos acostumando e só pensamos nessa falta naquelas ocasiões em que precisamos dessa parte para conseguirmos alcançar algo ou superar alguma coisa, ou para celebrar algum feito ou partilhar um sentimento de felicidade. Aprendemos a viver com essa nova condição. Agora somos assim. Mas, no entretanto, pequenos nadas servem para recordar bruscamente, com toda a violência, maior porque nos apanha desprevenidos, o que era antes. Por vezes são uns óculos, agora sem préstimo, que encontramos ao abrir uma gaveta; ou um velho casaco, esquecido no fundo de um armário; ou um marcador que encontramos ao abrir ao acaso um livro que sem o saber compartilhámos. A existência material guarda-nos essas marcas aparentemente insignificantes, que a princípio nos ferem pela sua assincronia, e que depois, pouco a pouco, nos vão deixando uma tristeza cada vez mais esbatida, uma reminiscência que se recorda com ternura - às vezes quase com indiferença, que tentamos evitar como se de uma questão de bons princípios ou de boa educação se tratasse. É que nem o mundo material, nem o mundo do espírito, foram feitos para a conservação de objectos ou sentimentos sem utilidade. Na inevitável - todos temos os nossos defeitos ... - citação proustiana (de cor): "não há nada que permaneça e dure, nem mesmo a dor" (algures no 2.º volume; mais tarde, no tomo final se mostrará como esta conclusão verdadeira mas simplista pode ser estilhaçada - mas isso já não pertence aqui).
É este sentimento, este esbatimento, que está retratado no sereníssimo poema de Ruy Belo:
MISSA DE ANIVERSÁRIO
Há um ano que os teus gestos andam
ausentes da nossa freguesia
Tu que eras destes campos
onde de novo a seara amadurece
donde és hoje?
Que nome novo tens?
Haverá mais singular fim de semana
do que um sábado assim que nunca mais tem fim?
Que ocupação é agora a tua
que tens todo o tempo livre à tua frente?
Que passos te levarão atrás
do arrulhar da pomba em nossos céus?
Que te acontece que não mais fizeste anos
embora a mesa posta continue à tua espera
e lá fora na estrada as amoreiras tenham outra vez
florido?
Era esta a voz dele assim é que falava
dizem agora as giestas desta sua terra
que o viram passar nos caminhos da infância
junto ao primeiro voo das perdizes
Já só na gravata te levamos morto àqueles caminhos
onde deixaste a marca dos teus pés
Apenas na gravata. A tua morte
deixou de nos vestir completamente
No verão em que partiste bem me lembro
pensei coisas profundas
É de novo verão. Cada vez tens menos lugar
neste canto de nós donde anualmente
te havemos piedosamente de desenterrar
Até à morte da morte
Ruy Belo, in "Aquele Grande Rio Eufrates"