Da morte podem dizer-se muitas banalidades. Mas a transformação da própria morte de alguém numa coisa banal é algo que implica a sua desumanização; o genocídio, as execuções em massa, os campos de extermínio, que correspondem a essa banalização da morte, só são concebíveis - ou aceitáveis num sentido não valorativo desta palavra - se os carrascos conseguirem ver as vítimas como «outros», como não-pessoas, como algo ontológicamente diferente de si próprios. Se assim não fosse, seria impossível afastar o carácter sacralizado, místico, da morte, como momento de condensação de uma qualquer energia vital, de um qualquer projecto específico, uma transformação ou cessação da alma (e vou já pedindo a necessária indulgência para estes dislates). No caso dos animais, esta dificuldade seria facilmente ultrapassada: não são humanos, o momento em que deixam de viver (=morte) nada tem de único porque os animais não têm singularidade, são a repetição de alguns moldes em diversas variações, não têm alma, não são criadores, são só criaturas, cujo sacríficio é autorizado desde que afastada a pura arbitrariedade. No entanto, a morte de um animal, se olhada, se «vivida», tem muito de singular, de «humano», na dor, no sofrimento, no medo, na presciência ou na falta dela, «quando a luz se escoa», como fica claro no tempo implacável deste terrível e belo poema de Francisco Brines (a tradução, como sempre. é de José Bento):
MORTE DE UM CÃO
A chegar à cidade
pude ver que os rapazes atacavam o cão
e o obrigavam, confundidos os gritos e os uivos, a desfazer o nó com o corpo do outro,
e a corrida louca contra o muro,
e a pedra terrível contra o crâneo,
e muitas pedras mais.
E volto a ver aquele rodopio
súbito, todo o pavor do seu corpo,
sua vertigem ao correr,
sua vida a transbordar daquele corpo flexível,
sua vida que escapava pelos olhos abertos,
cada vez mais abertos
porque a morte o obrigava, com sua pressa irada,
a abandonar de dentro tanta substância por viver,
e só pelos olhos encontrava saída;
porque não havia luz,
porque só a sombra chegava, tenebrosa.
Ali entre os detritos
daquele muro de inóspito arrabalde
ficou estendido o cão;
e agora lembro sua cabeça hirta
com angústia imprevista:
como os humanos, seus olhos reflectiam
o terror ao vazio.
Mesmo as humildes criaturas invertebradas, em que não encontramos a dimensão trágica da morte por imitação da morte humana, contêm a possibilidade de individualização pela morte. E agora recorro à serena poesia de Fiama Hasse Pais Brandão:
NATUREZA MORTA COM LOUVADEUS
Foi o último hóspede a sentar-se
no topo da mesa, já depois do martírio.
As asas magníficas haviam-lhe sido quebradas
por algum vento. Perdera o rumo
sobre a película cintilante de água
no riacho parado. Tal como poisou
junto de nós, com o belo corpo magro
arquejante, lembrava, ainda segundo o seu nome,
um santo mártir. Enquanto meditávamos,
a morte sobreveio, e a pequena criatura,
que viera partilhar a nossa mesa,
depois de ter sido banida das águas
foi banida da terra. Alguém pegou
no volúvel alado corpo morto
abandonado sem nexo na brancura da toalha
- que maculava -
e o atirou para qualquer arbusto raro
que o poeta ainda pôde fotografar.
A morte é tão só, estupidamente, desencarnadamente, a ausência de vida e a memória da mesma. Como uma sombra. Mais uma vez Fiama:
A CRIA MORTA
As ovelhas baliam ao longe
levadas pelo caseiro
até à outra margem do campo,
quando a verdura escorre mansamente
de socalco em socalco
e fica estagnada numa berma sombria.
Só a sombra
detém esse caudal verde.
E nada susteve a primavera inelutável,
nem a agonia
do cordeiro ante-pascal.